PRIMEIRO ANO - 2010

VARIANTES LINGUÍSTICAS: dialetos e registros


(Maria Antonieta Antunes Cunha)



O ramo da Lingüística chamado Sociolingüística, que se tem ocupado sobretudo da caracterização e do uso das variações lingüísticas, não é novo. Há muito tempo esses estudos teóricos vêm sendo realizados, tanto na Europa como nas Américas (inclusive no Brasil), mas é bem mais recente sua aplicação ao ensino/aprendizagem de línguas, especialmente da língua materna.

Entendemos agora a linguagem não como uma simples forma de comunicação (em que se valorizava sobretudo o locutor/emissor), mas como interação, na qual os sujeitos envolvidos realizam uma ação de mão dupla, um influindo sobre o outro, em função do lugar que ocupam nessa interação.

Reconhecer locutor e interlocutor como igualmente importantes no processo de interação, percebê-los como co-autores, exige um aprofundamento na análise das condições em que eles interagem. E que condições são essas? São, de um lado, as características do locutor – suas marcas pessoais, como conhecimentos, linguagem, posição etc. – e de outro, as características do interlocutor e do assunto, o que cria um contexto especial, único em que acontece a interação, pois é a partir dessas condições sociais e históricas em que se dá cada interação, definindo modos diferentes de uso da língua.

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RETRATO DE VELHO

Carlos Drummond de Andrade


Tem terror a criança. Solenemente, faz queixa do bisneto, que lhe sumiu com a palha de cigarro, para vingar-se de seus ralhos intempestivos. Menino é bicho ruim, comenta. Ao chegar a avô, era terno e até meloso, mas a idade o torna coriáceo.

Na troca de roupa, atira no chão as peças usadas. Alguém às recolhe à cesta, para lavar. Ele suspeita que pretendam subtraí-las, vai à cesta, vasculha, retira o que é seu, lava-o, passa-o. Mal, naturalmente.

- Da próxima vez que ele vier, diz a nora, terei de fechar o registro, para evitar que ele desperdice água.

Espanta-se com os direitos concedidos às empregadas. Onde já se viu? Isso aqui é o paraíso das criadas. A patroa acorda cedo para despertar a cozinheira. Ele se levanta mais cedo ainda, e vai acordar a dona da casa:

- Acorda, sua mandriona, o dia já clareou!

As empregadas reagem contra a tirania, despedem-se. E sem empregadas, sua presença ainda é mais terrível.

As netas adolescentes recebem amigos. Um deles, o pintor, foi acometido de mal súbito e teve de deitar-se na cama de uma das garotas. Indignação: Que pouca vergonha é essa? Esse bandalho aí conspurcando o leito de uma virgem? Ou quem sabe se nem é mais virgem?

- Vovô, o senhor é um monstro!

E é um custo impedir que ele escaramuce o doente para fora de casa.

- A senhora deixa suas filhas irem ao baile sozinhas com rapazes? Diga, a senhora deixa?

- Não vão sozinhas, vão com os rapazes.

- Pior ainda! Muito pior! A obrigação dos pais é acompanhar as filhas a tudo quanto é festa.

- Papai, a gente nem pode entrar lá com as meninas. É coisa de brotos.

- É, não é? Pois me dá depressa o chapéu para eu ir lá dizer poucas e boas!

Não sabe o que fazer dele. Que fim se pode dar a velhos implicantes? O jeito é guardá-lo por três meses e deixá-lo ir para outra casa, brigado. Mais três meses, e nova mudança, nas mesmas condições. O velho é duro:

- Vocês me deixam esbodegado, vocês são insuportáveis! – queixa-se ao sair. Mas volta.

- Descobri que paciência é uma forma de amor – diz-me uma das filhas, sorrindo.

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O texto acima é uma CRÕNICA: composição curta, voltada para os acontecimentos do cotidiano, que pode contar uma história, tecer comentários sociais ou políticos, ou ainda apresentar um conteúdo lírico, poético, apresentando a emoção do autor diante de certo acontecimento. Muitas vezes, a crônica tem um tom de humor. Todas essas características têm a ver com o fato de a crônica aparecer, inicialmente, em jornais e revistas.

A crônica que estamos estudando é uma narrativa. O texto narrativo, ou narração é caracterizado por contar uma história, por meio de um narrador, sobre personagens (humanos, animais, imaginários) que vivem os acontecimentos desenrolados num espaço e num tempo. O narrador, quem conta a história, pode ser personagem dela, ou pode ser apenas observador dos fatos. Como narrador-personagem, ele conta a história em primeira pessoa (eu, nós); como narrador-obervador, a narrativa é feita em terceira pessoa (ele, ela, eles).

Nesse texto de Drummond, podemos nos divertir não simplesmente com um avô ranzinza, mas com um conflito cultural entre gerações: os valores daquele homem de 85 anos forçosamente são diferentes dos de seus filhos, noras e genros, e sobretudo de seus netos e até bisnetos.

Os valores, tanto pessoais quanto dos grupos são constituídos historicamente e expressam a cultura dessas pessoas ou grupos e dependem basicamente das experiências de vida do indivíduo e de seu grupo, ocorridas em determinada época e lugar.

Podemos conceituar cultura como o conjunto de ações, pensamentos e valores de uma pessoa ou de uma comunidade.

Essa diferença de cultura que observamos dentro de uma mesma família tem um forte componente temporal. A diferença do avô para com os outros está no seu modo de entender as situações da vida, em certos costumes e, portanto, na sua forma de usar a língua. Para ele, “a empregada tem de saber o seu lugar”, moços não se deitam em cama de moças, estas não saem sozinhas com rapazes. Tudo de acordo com o figurino do fim do século XIX, o da sua juventude.

Essa diferença cultural também pode estar relacionada ao lugar/espaço: mesmo hoje, com a globalização, os valores e costumes são bem diferentes numa pequena cidade do interior do Brasil e numa capital como São Paulo. Por isso mesmo, a língua numa cidade interiorana costuma mudar (e muda sempre) muito mais devagar do que nas grandes cidades, onde todos os tipos de gíria e de neologismo (palavra recém-criada na língua), ou palavra já existente usada com outro significado) “nascem” e “morrem” muito rapidamente. A palavra broto, por exemplo, usada na crônica de Drummond, já saiu de circulação há bastante tempo.

Isso mostra o caráter dinâmico da língua, como revela também a constante evolução da sociedade e de sua cultura, refletida sempre na língua. Esta, por sua vez, em constante construção pelos seus usuários, acaba por transformar as relações humanas e, portanto, a cultura e a sociedade.

A cultura, entendida como o conjunto de formas de fazer, pensar e sentir de uma pessoa ou de uma sociedade, é uma construção histórica e varia no espaço e no tempo. A língua é, ao mesmo tempo, a melhor expressão da cultura e um forte elemento de sua transformação. A língua tem o mesmo caráter dinâmico da cultura.


OS DIALETOS DO PORTUGUÊS


As incontáveis possibilidades de uso que qualquer língua oferece à comunidade que a usa são a melhor prova de que ela é um sistema, sim, mas aberto e em construção.

Na realidade, a língua apresenta certas regularidades que todo falante deve seguir, sob pena de não criar um enunciado reconhecido como da língua e de não ser compreendido. Você não pode usar o artigo em outro lugar que não seja antes do substantivo a que ele se refere (poeta o é famoso), assim como não pode usar uma preposição depois do termo que ele rege (Nós gostamos muito sorvete de.); é obrigatória alguma marca de plural para fazer a concordância de número. Essa marca pode variar conforme os usos dos grupos sociais:

- Os meninos doentes choravam sem parar.

- Os menino (ou mininu) doente chorava sem parar (ou pará).

Mesmo com sotaques diferentes, que ocorrem tanto na primeira quanto na segunda frase, os dois grupos serão entendidos por todos, uma vez que estão usando o mesmo sistema lingüístico, mas se não houvesse marca nenhuma de plural, em qualquer das falas, os interlocutores não entenderiam o real significado da frase, ou seja, que eram pelo menos dois meninos doentes e chorando sem parar.

Podemos concluir, então, que a língua tem regularidades, um sistema a ser seguido, mas como é um sistema aberto, oferece inúmeras possibilidades de variação de uso, que criam, junto com o contexto, interações sempre novas e irrepetíveis.

As variações da língua, portanto, são de duas ordens:

1. As variantes comuns a um grupo, chamadas dialetos;

2. As variantes do uso de cada sujeito, na situação concreta de interação, chamadas registros.

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CIÚME

Lygia Bojunga


Eu tinha 9 anos quando a gente se encontrou: o Ciúme e eu.Era verão. Eu dormia no mesmo quarto que a minha irmã. A janela estava aberta.De repente, sem nem saber direito se eu estava acordada ou dormindo, eu senti direitinho que ele estava ali: entre a cama da minha irmã e a minha. A noite nãoinha lua nem tinha estrela; e quando eu fui estender o braço para acender a luz, ele não quis:

“Me deixa assim no escuro.”

Que medo que me deu.

Senti ele chegando cada vez mais perto. Fui me encolhendo.

“Pega a minha irmã”, eu falei.

“Ali, ó, na outra cama. Eu sou pequena e ela já fez 14 anos, pega ela. Ela é bonita e eu sou feia; o meu pai, a minha mãe, a minha tia, todo o mundo prefere ela: por que você não prefere também?”

Mas o Ciúme não queria saber da minha irmã, e eu já estava tão espremida no canto (a minha cama era contra a parede) que eu não tinha mais para onde fugir, então eu pedia e pedia de novo:

“Ela é a primeira da turma e eu tenho horror de estudar, olha, ela tá logo ali; e ela é tão inteligente pra conversar! Ela diz poesia, ela sabe dançar, o meu pai tá ensinando inglês e francês pra ela e diz que pra mim não vale a pena porque eu não presto atenção, então você pensa que eu não vejo o jeito que o meu pai olha pra ela quando todo o mundo diz que encanto de moça que é a sua filha mais velha? Pega, pega, PEGA ela!”

“Não. Eu quero é você.”

E o Ciúme disse aquilo com uma voz tão calma que eu fui me acalmando. E o medo meio que foi passando.

“Bom” eu acabei suspirando “pelo menos tem alguém que gosta mais de mim do que dela.”

E aí o vento do mar entrou pela janela, soprou o Ciúme e apagou ele feito vela.

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Você deve ter notado uma enorme diferença entre a linguagem do avô, da crônica de Drummond, e da menina, do conto de Lygia Bojunga. Temos, com essas duas persnonagens, exemplos de variação da língua segundo a idade. Podemos dizer que as crianças não falam como os jovens, adultos, nem como os idosos. As faixas etárias apresentam, assim, características diferentes de linguagem.

A criança, por exemplo, não dominam ou não usam várias estruturas da língua. Dependendo da idade, não pronunciam grupos consonantais (branco / banco). Os jovens, por sua vez, têm uma linguagem marcada pelas gírias, pelas simplificações, com certa marca de rebeldia. A linguagem do adulto tende a se tornar mais conservadora, mais comportada.

Concluímos, portanto, que existe uma forma de usar a língua que é normal para cada faixa etária.

O sujeito aprende a sua língua em convívio com a família, amigos, enfim, pessoas que estão ao seu redor e participam do seu cotidiano. Cada um vai assimilando os usos lingüísticos daquele grupo, ainda que construindo a seu modo esse seu saber. Em geral, o sujeito não tem consciência dessa “norma” que ele vai internalizando no contato com os outros elementos do grupo.

Queira ou não, tenha ou não consciência disso, o sujeito pertence a grupos. Você, por exemplo, é homem ou mulher, é de determinada região, tem certa idade, profissão e, considerando cada uma dessas características, você forma um grupo com outras pessoas. Normalmente, seu comportamento social e lingüístico revela, até sem você querer, a que grupo(s) você pertence.

Essa norma de cada grupo constitui o que costumamos chamar de dialeto.

A língua varia também de região para região: no Nordeste existem muitas palavras deconhecidas por brasileiros do Sul. Um fator importante e marcante na consideração dos dialetos regionais é o sotaque – melodia típica da fala de cada região, bem como o timbre aberto ou fechado com que pronunciamos as vogais, bem como a pronúncia de determinadas consoantes. Nesse caso, não é a divisão geográfica ou a divisão administrativa de cada estado que vale: o norte de Minas Gerais, por exemplo, tem um vocabulário e um sotaque muito parecidos com os da Bahia.

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